Quem somos

A LINGUAGEM EM GREGÓRIO DE NISSA E SÃO BOAVENTURA


A LINGUAGEM EM GREGÓRIO DE NISSA E SÃO BOAVENTURA

Descrever a linguagem de personalidades da história é entender a sua essência e como comunicavam esse conteúdo. Por isso, este trabalho quer se ocupar de dois filósofos que encontram no cristianismo uma ponte para compreender a existência humana.

GREGÓRIO DE NISSA

Introdução

Gregório nasceu entre os anos de 330 e 340 d.C. em Cesareia na Capadócia, numa região que hoje é denominada Kayseri, na Turquia. Estudou em Cesareia, Alexandria e Atenas. Estas foram importantes cidades que determinaram tanto o seu pensamento cristão como o filosófico. Gregório faz parte da época da Patrística (Pais da Igreja) quando o cristianismo começa a se solidificar e se tornar a Igreja Oficial do império.
O sobrenome “Nissa” vem da cidade para onde Gregório foi consagrado bispo, numa região da Capadócia, pelo seu irmão Basílio, que era bispo de Cesareia. Como bispo, acompanhou a vida das igrejas e participou do importante Concílio de Constantinopla[1] no ano de 381. Ficou conhecido como um dos três padres capadócios que, ao lado de Basílio, seu irmão, e Gregório de Nazianzeno, reafirmaram a ortodoxia cristã diante das manifestações dos hereges do século IV.
Nesse ambiente controverso Gregório de Nissa formula algumas de suas grandes obras como a doutrina da Santíssima Trindade. Esta obra de Gregório é inspirada na obra de Platão quando ele dialoga com Fedroa respeito de temas como o amor. A partir desse tema, Gregório faz uma releitura da obra de Platão sob o ponto de vista de um autor cristão. Ele entende que a Sagrada Escritura é a norma e a lei de toda doutrina. Sob este prisma irá elaborar outras obras como Sobre a formação do homeme Diálogo sobre a alma e a ressurreição.
Desenvolvimento
Para trazer uma luz à compreensão de suas obras, vamos abordar algumas considerações que ele faz na obra Sobre a formação do homem. Nesta,Gregório busca compreender o homem e a sua existência em relação a Deus. Para poder compreendê-lo melhor, ele faz uso de uma ideia platônica que divide a realidade entre “inteligível” e “sensível”. A realidade inteligível seria aquela em que estão as naturezas angelicais que não podem ser localizados e de difícil definição. É o que está separado do mundo material.
A realidade sensível é o cosmo que se apresenta nos quatro elementos da criação: terra, água, ar e fogo. Estes se apresentam numa mudança de ciclos onde um elemento se torna o outro num ritmo que se repete. Este é o mundo da matéria onde as coisas se desenvolvem sempre da mesma forma. É uma repetição eterna que retorna sobre si mesmo sem que haja nenhuma novidade. Ele o faz citando o exemplo do sol que continuará iluminando a terra sempre imóvel. Esta terra, por sua vez, continua a levar as águas dos rios para o mar que não aumenta o seu volume, mesmo com toda a água que recebe.
Em comparação com o exemplo anterior, Gregório diz quese a alma do homem está voltada para mundo material ele também caminha em torno de si mesmo sem progredir. É como caminhar sobre a areia onde os seus pés se movem, mas não vai adiante.
O homem, portanto, está no meio dessa relação entre o mundo inteligível através da sua alma, o que o aproxima das potências celestes, e entre o mundo sensível que é o seu corpo. Essa condição dá ao homem uma realidade dualista: corpo e alma. Dessa forma, ele participa da realidade divina e incorpórea e da realidade terrena corpórea, material e irracional. É o que ele vai denominar de methórios, como uma linha que demarca dois territórios.
Essa divisão dá um novo enfoque à compreensão entre o mundo sensível e inteligível, que é a denominação entre incriado e criado.Ele descreve o evento metafísico que é a passagem do não-ser para o ser através do ato criador de Deus. O homem faz parte da natureza criada que é inteligível e sensível[2].
As teses de Gregório então superam as concepções platônicas que afirmavam a existência de realidades intermediárias entre Deus e o homem. Existe, sim, uma distância. Deus, o incriado, é o infinito. O homem, junto com todos os demais seres da criação, faz parte da finitude do ser e, ao mesmo tempo, infinitamente distantes do Deus criador.
A sua linguagem adquire um contorno cristão num momento histórico em que o cristianismo estão se solidificando. Novamente vemos um teólogo “beber” de fontes filosóficas. Quanto se inspira em Platão para falar sobre o amor, ele compreende que tudo o que existe e o que pode vir a existir provém do Verbo de Deus (ou qualquer outro termo que designa a potência eterna de Deus). Aqui o ser humano surge desse ato criador de Deus através do seu amor. Este foi criado para participar dos bens divinos. A marca do ato criador de Deus é para o bem e isso está na origem da criação do homem. Nessa condição, ele partilha de todas as características do próprio Deus como a razão e a sabedoria, por exemplo. O homem tem dentro dele a centelha da eternidade de Deus, pois esse é o seu alvo pelo fato de ter a semelhança da imagem de Deus, conforme palavras bíblicas de Gênesis 1.26a[3].
O homem tem a semelhança de Deus, mas não é Deus. Por isso, ele se entrega para o mal no momento em que se afasta do bem. Ele é dotado de uma liberdade em sua natureza que o leva à escuridão. Essa é a característica do espírito como o vaso que acolhe no sentido de se abrir ou fechar para os bens que Deus quer comunicar para o homem. É nisso que reside a origem do mal que não procede de Deus, segundo Gregório de Nissa. É o homem que se afasta do projeto criador de Deus.
O que podemos deduzir dessa afirmação de Gregório é a relação próxima que ele põe o ser humano com Deus quando diz que este foi feito para o bem. Mas é preciso ter um olhar criterioso para essa definição pois pode levar a uma compreensão da divinização do homem ou, ainda, uma autodivinização. Quando lemos que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, conforme citação bíblica descrita acima, isso nos diz que existe uma relação do ser humano com Deus. Mas de modo nenhum afirma que Deus e o ser humano tenham a mesma origem ou sejam feitos da mesma matéria. Criador e criatura são distintos em sua totalidade. Nisso nos aproximamos de Agostinho que fez todo um movimento no seu exercício da fé através da razão. Nas diversas fases da sua conversão ele experimenta um Deus que tem como objetivo levar o homem para o Bem infinito. E para alcançar isso, é preciso usar a razão.
Esses conceitos e todos os demais escritos de Gregório tem essa veia platônica, sendo ele o filósofo da igreja e que traduz o Platão para a doutrina cristã.
CONCLUSÃO
Diante dessa constatação, percebemos que Gregório tem uma linguagem que perpassa o teológico e o filosófico. No teológico ele tem por base a escritura sagrada e uma compreensão teológica bem definida. O homem está em relação com Deus e as suas teses tem por objetivo conduzir o homem à compreensão da sua origem e sua relação com Deus. No filosófico Gregório faz perceber em seus escritos que ele busca em Platão uma orientação para a compreensão da essência humana. Na verdade, ele traduz Platão para uma versão cristã a respeito do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Justino Mártir diz que estes escritos de Platão preparam a revelação cristã. O platonismo molda a teologia de Gregório de Nissa, mas não é a única. Ele também recebe a influência da cultura clássica, a inspiração bíblica e a especulação judaico-cristã num momento de transição onde o cristianismo finca as suas raízes na história. Todos esses elementos definem a linguagem de Gregório.

BOAVENTURA

Introdução

Boaventura nasceu na cidade de Bagnorea, na região central da Itália no ano de 1221. Entra para estudar na ordem franciscana em 1243 de onde recebe as primeiras orientações que definem o seu perfil teológico e filosófico.

Desenvolvimento

Na história da filosofia medieval Boaventura aparece como um filósofo e teólogo que segue a doutrina filosófica e teológica de Agostinho. Isso também o aproxima de Aristóteles quando ele tem contato com as traduções e comentários de filósofos árabes e das traduções das obras gregas.Boaventura e Tomás de Aquino foram os maiores teólogos da Escolástica, recebendo o título de Doutor Seráfico ainda em vida.

Como alguém próximo do pensamento filosófico e teológico de Agostinho, segue alguns de seus princípios, como[4]:


  •  A Filosofia está subordinada à Teologia;
  • O homem é dotado de inteligência que procede de Deus em forma de luz que lhe permite conhecer as verdades eternas. Essa é a teoria da Iluminação;
  • O Bem precede a Verdade, e a Vontade antecede a Inteligência;
  • A alma e o corpo são duas substâncias completas no ser humano, unidas acidentalmente, assim como o cavalo está ligado ao cavaleiro;
  • A pessoa é um ente composto de pluralidade de formas, e não uma somente;
  • Na criação do mundo material, Deus colocou nele as formas seminais de todas as coisas;
  • Anjos, entes imateriais criados, são compostos de matéria e forma.
Nesses conceitos vemos a relação que existe entra a filosofia e a teologia. Mas, por se tratar de um período em que a Igreja tinha o papel de direcionar os rumos, a filosofia ocupa um papel secundário, a princípio. Mas se observamos a fundamentação das teses, observamos que muitos têm no seu alicerce os grandes pensadores como Aristóteles, Platão e Sócrates. É o caso de Gregório de Nissa no ponto anterior com relação a Platão, de Tomás de Aquino com Aristóteles e assim por diante. Então, fica a pergunta: quem determina quem?
O que acontece é uma nova roupagem onde Boaventura, embora receba essa perspectiva filosófica de Agostinho, apoia-se nas ideias aristotélicas de que o mundo exterior está baseado nos sentidos. A iluminação divina é necessária para explicar tanto a aquisição dos conceitos universais a partir das imagens dos sentidos, como a certeza do julgamento intelectual.
Em sua metafísica, Boaventura afirma que toda a criação é modelada de acordo com as causas exemplares ou ideias que existem na mente de Deus. Seria através dessas ideias que Deus conhece todas as criaturas. Isso Boaventura denomina de exemplarismo.
Nessa relação com o sagrado, Boaventura expõe um caminho espiritual por onde a mente se move desde a perfeição das criaturas irracionais até o estado final de repouso tranquilo onde nossas afeições são transferidas para Deus e transformadas em Deus. Para isso, propõe três vias que nos fazem entender o seu pensamento e os seus escritos sobre a vida espiritual.

  •       Via purgativa: inspirada pela consciência, que expulsa o pecado;
  •        Via iluminativa: inspirada pelo intelecto, que imita Cristo;
  •        Via unitiva: inspirada pela sabedoria, que nos une a Deus pelo amor.

Essas três vias determinam o pensamento teológico de Boaventura quando ele se pergunta: o que vem a ser o homem? Como religioso, compreende que a criação do homem por Deus o eleva a um estado de santidade e justiça. A sua alma contém o vestígio do Criador e uma imagem da Trindade. Já que o homem é dotado de faculdades mentais (memória, inteligência e vontade), junto com sua essência, pode chegar ao ente infinito e agir à semelhança de Deus. Isso significa que com o auxílio da graça divina, poderia ver Deus na luz da contemplação. Não é um estar frente a frente com Deus, mas a exemplo de 1 Coríntios 13.12[5], agora só podemos ver uma imagem imperfeita num espelho embaçado. Isso acontece porque o pecado surge e leva o homem a agir em função dele mesmo e dos seus interesses. Acontece uma ruptura entre Deus e o homem.
Para novamente se reaproximar de Deus, o homem carece da graça de Deus. Nessa reaproximação o homem precisa passar pelas três vias descritas acima. Pela sua própria força é muito difícil pois precisa de muito esforço. Ele alcança isso através da meditação, a oração, a contemplação e a prática das virtudes. Sem entrar nos seus detalhes, Boaventura traz recomendações a seus confrades sobre como chegar à perfeição em Deus na vida monástica. Ele o faz a partir dos seguintes tópicos[6]:
  •            A meditação, o conhecimento de si mesmo, a contemplação
  •          Ofício Divino
  •          A oração em geral, a confissão, a comunhão
  •          As refeições
  •          Os serviços, a honestidade de vida, o falar com os leigos
  •          Os votos religiosos

Tomando como base o texto bíblico das Bem-aventuranças no evangelho de Mateus 5.1-12[7], Boaventura propõe um laço de união entre o sobrenatural e o natural: no amor ao próximo.Ele diz que os pobres, os que choram, os famintos, os puros de coração, os construtores da paz, os injuriados e perseguidos são os que nos desafiam; e de pouco adiantaria dizer que eles são filhos de Deus, se não nos preocupássemos com sua sorte nesta vida.

Conclusão

Através dessa teologia e filosofia conseguimos compreender a linguagem de Boaventura que está voltada para a educação. Como é com Gregório, também Boaventura busca trazer o aspecto da fé para a filosofia e razão. Na visão dele, estes representam uma etapa no caminho que leva a alma do homem para Deus. A fé leva à razão que, por sua vez, leva à contemplação. Parte-se do sensível para poder transcendê-lo. O sensível é apenas um sinal de Deus, e não Ele próprio.
As obras místicas de Boaventura falam da presença eterna de Deus nas pessoas que permite a sabedoria. Com isso, ele quer formar pessoas para o exercício cristão, principalmente aqueles que se dispõe a seguir a vida religiosa como eram os frades e as religiosas. Em partes, isso é muito próximo do modelo de vida religiosa dos budistas. Mas a diferença crucial para o cristão está no fato de que a perfeição pode ser alcançada somente pela graça de Deus. As virtudes recomendadas por ele não se esgotam em si mesmas ou nas pessoas, mas para aquilo que as transcende como o fim último que é a contemplação face a face. Não é algo que está restrito a um grupo exclusivo, mas que pode ser seguido por todas as pessoas que desejam seguir o ensinamento cristão mais de perto. Na visão e linguagem de Boaventura, o que alimenta o viver e o agir cristão é o Evangelho e o modelo que inspira e a pessoa de Francisco de Assis. Essa será a marca que ele deixará para a História da filosofia e da teologia.

Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri (SP): Sociedade Bíblica do Brasil, 2001.

BONI, Luis Alberto De. A educação em São Boaventura. Portugal: Universidade do Porto, 2013.
NUNES, Ruy Afonso da Costa. São Boaventura e Aristóteles. In:Cadernos de História e Filosofia da Educação. São Paulo: FEUSP, 2001, v. 6. Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur15/ruy.htm> Acesso em: 17 jun. 2015.
PESTANA, Álvaro César. Platão e Gregório de Nissa. Seminário Bíblico Nacional. Belo Horizonte, 2003. Disponível em: http://www.revistas.fflch.usp.br/letrasclassicas/article/viewFile/604/539. Acesso em: 15 jun. 2015
ROBERTS, Mara. Concílio de Constantinopla I (381 d.C). Disponível em: http://doutrinacatolica-antes-vaticano2.blogspot.com.br/2014/05/concilio-de-constantinopla-381-dc.html > Acesso 19 jun. 2015.

SANTOS, Bento Silva. COSTA, Ricardo da. Os Padres da Igreja. Vitória: SEAD – Secretaria de Ensino a Distância / UFES, 2015, p. 21-39.



[1] O Concílio de Constantinopla foi realizado entre os meses de maio e julho de 381 na Igreja de Santa Irene. Foi convocado pelo imperador romano Teodósio. Este concílio foi o segundo dos três concílios ecumênicos e o primeiros dos três que foram realizados em Constantinopla. Este concílio reuniu 150 padres das igrejas do oriente e ocidente e discutiram a importância do Espírito Santo na formulação da compreensão da trindade. NO Concílio de Niceia em 325 d.C. a formulação a respeito do Espírito Santo trazia o texto “Cremos no Espírito Santo”. O Concílio de Constantino acrescenta as palavras “Senhor e Fonte da vida, que procede do Pai, adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e falou pelos profetas”. Assim teve origem o símbolo da fé Niceno-constantinopolitano, segundo a qual é preciso crer “numa só divindade, poder e essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo e, por isso, numa divindade em três hipóteses perfeitas, ou três pessoas perfeitas”. Gregório de Nissa participou deste concílio debatendo e defendendo a fé cristã diante das concepções heréticas de grupos arianos e macedônios. Cf. ROBERTS, Mara. Concílio de Constantinopla I (381 d.C). Disponível em: http://doutrinacatolica-antes-vaticano2.blogspot.com.br/2014/05/concilio-de-constantinopla-381-dc.html> Acesso 19 jun. 2015.
[2] Cf. SANTOS, Bento Silva. COSTA, Ricardo da. Os Padres da Igreja, p. 35.
[3] “Aí ele disse: Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” In:  Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje, p. 01.
[4] Os pontos abaixo são um resumo das considerações a respeito da compreensão de Agostinho que Boaventura também faz acolhe em sua teologia. Cf. NUNES, Ruy Afonso da Costa. São Boaventura e Aristóteles. In: Cadernos de História e Filosofia da Educação. Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur15/ruy.htm > Acesso em: 17 jun. 2015.
[5] “O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento é imperfeito, mas depois conhecerei perfeitamente, assim como sou conhecido por Deus” In: Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje, p. 246.
[6]Os tópicos são apenas os títulos que na obra citada descreve em detalhes o específico de cada tema. Cf. NUNES, Ruy Afonso da Costa. Op. cit.
[7] O texto é uma citação de parte do Sermão da Montanha que Jesus dirige para uma multidão que estão reunida em torno dele para ouvi-lo. In: Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje, p. 7.

Nenhum comentário:

Postar um comentário